Posse de Sarney mostrou que nossa democracia não é para principiantes

*Luiz Carlos Azedo

Tanto os militares fracassaram no seu projeto autoritário, quanto os setores da oposição que imaginavam uma ruptura que se confundisse com a revolução

Como resistir ao chiste de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim, sobre a complexidade da terra em que nascemos: “O Brasil não é para principiantes”? Esses 40 anos de redemocratização são uma prova disso. Alguns, mesmo hoje, por incompreensão política ou dogma ideológico, ainda torcem o nariz para o ex-presidente José Sarney, cuja posse, em 15 de março de 1985, marcou o fim da ditadura militar. Entretanto, foi o político que legalizou os partidos comunistas e convocou a Constituinte de 1985, sem a qual não teríamos as instituições capazes de barrar a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, cujo objetivo era destituir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Ontem, comemorou-se a posse de Sarney como um marco inaugural da ordem democrática que temos hoje, num evento histórico realizado no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, pela Fundação Astrojildo Pereira e o Cidadania, com apoio do Correio Braziliense. Hoje, em Copacabana, haverá uma grande manifestação de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro e em defesa da anistia aos condenados por invadirem os prédios da Praça dos Três Poderes, vandalizando o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF).

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Esse é um retrato do “estado da arte” na qual a democracia brasileira se encontra, um momento complexo, como outros que já vivemos e devemos revisitar, para compreender no passado os riscos que corremos do presente. A transição do regime militar para a democracia não foi fruto de um projeto nem de uma ruptura política radical. Havia, sim, um projeto de institucionalização do regime militar, que propunha uma espécie de “mexicanização” do Brasil, num modelo parecido com o do Partido da Revolução Institucional (PRI), que governava o México há décadas, mais ou menos como ocorre hoje na pequena Cingapura, com o Partido da Ação Popular, uma síntese de modernização com partido dominante, que serve de modelo para regimes “iliberais” no mundo.

O modelo liberal adotado por Roberto Campos no governo Castelo Branco, logo após o golpe militar de 1964, derivou na década de 1970 para um capitalismo de Estado, que havia sido expandido pelos militares e entrara em crise com o “choque do petróleo” de 1973. Houve também a perda de controle do processo de distensão política que havia sido implementado pelo governo Geisel para conter a oposição, ainda que a política de extermínio de líderes oposicionistas tenha se mantido em seu governo, até a morte do jornalista Vladimir Herzog e o do operário Manuel Fiel, em 1975, numa unidade do Exército em São Paulo.

Tanto os militares fracassaram nesse processo, quanto os setores da oposição que imaginavam uma ruptura com o regime que se confundisse com uma revolução, como ocorreu na Nicarágua, em 1979. A anistia aprovada pelo Congresso no governo de João Figueiredo foi mais um exemplo de que as coisas no Brasil sempre têm singularidade: tanto os oposicionistas quanto carcereiros, torturadores e assassinos foram anistiados. A volta dos principais líderes de oposição à vida política veio acompanhada de uma reforma partidária que restabeleceu o pluripartidarismo e deu início a um processo de transição política cuja gênese política pode ser localizada na espetacular vitória eleitoral do MDB em 1974.

Frente ampla

Os grupos que haviam aderido à luta armada foram dizimados pelos órgãos de repressão, porém, as vitórias eleitorais consolidaram o MDB como principal estuário da oposição. Isso pôs em xeque o projeto de institucionalização do regime, porque a política de frente democrática reagrupou as forças que haviam sido responsáveis pela eleição do presidente Juscelino Kubitschek, em 1955: liberais (PSD), trabalhistas (PTB), socialistas (PSB) e comunistas (PCB). Sua consolidação, com um programa que defendia a anistia e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, se daria com uma nova vitória eleitoral em 1978.

Entretanto, essa aliança não era suficiente para mudar o regime. Os fatores decisivos eram uma mistura de azeite e vinagre: de um lado, a emergência do um novo sindicalismo do ABC, cujas bases estavam nas grandes empresas da modernização conservadora promovida pelo regime militar, que deu aos trabalhadores em geral um novo protagonismo político; de outro, a ampliação da frente democrática para além do MDB, com atração de dissidentes do PDS, a antiga Arena, como o senador Teotônio Vilela (AL), líder da campanha da anistia, que percorria as cadeias para visitar os prisioneiros políticos.

Imediatamente após a grande frustração pela derrota da Emenda Dante de Oliveira (MDB-MT), que propunha a volta das eleições diretas para a Presidência da República, a mobilização popular e a ampliação das alianças para setores dissidentes do regime foram decisivas para a eleição de Tancredo Neves, tendo como vice-presidente José Sarney, no colégio eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. A frente democrática era mais ampla que o MDB, ao incorporar a dissidência do PDS que formou o PFL e indicou para vice-presidente da República o político maranhense, cuja origem era a antiga UDN bossa nova. Quis a força do destino que assumisse a Presidência e o protagonismo da reconciliação nacional. A verdadeira ruptura com o regime militar foi a convocação da Assembleia Nacional Constituinte pelo presidente Sarney.

*Luiz Carlos Azedo, Jornalista, colunista do Correio Braziliense. A coluna deste domingo (16) está publicada também no Estado de Minas.

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