*Luiz Carlos Azedo
O encontro de Lula com Putin segue a linha de independência da política externa brasileira, mas acontece num contexto muito diferente de outras ocasiões, por causa da guerra da Ucrânia
O escritor judeu-russo Ilya Ehrenburg Grigoryevich era um veterano jornalista quando acompanhou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com a experiência de repórter que cobriu a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Amigo de Jorge Amado e Pablo Neruda, teve várias obras traduzidas no Brasil, entre as quais, A queda de Paris, que descreve a ocupação da França pelos alemães, e Moscou não crê em lágrimas, que narra a resiliência russa. Ehrenburg foi o primeiro escritor a denunciar os números do Holocausto, no Livro negro, com relatos de judeus sobreviventes da Polônia e da antiga União Soviética sobre os campos de concentração.
Com o fim da guerra, porém, foi muito criticado porque tratou todos os alemães como “boches” durante a guerra, não distinguia um agente da Gestapo do adolescente mandado para a frente de batalha como bucha de canhão: “Vamos matar. Se você não tiver matado pelo menos um alemão um dia, você teve desperdiçado aquele dia… Não conte dias; não conte milhas. Conte apenas o número de alemães que você matou…”, chegou a dizer, num artigo intitulado Morte aos alemães. O exército de Hitler foi parado às portas de Moscou e, depois, derrotado na sangrenta batalha de Stalingrado, que marcou o início da derrocada militar do líder nazista. Morreram na guerra 20 milhões de soviéticos.
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Mais tarde, para se defender, Ehrenburg lembrou um artigo de 1942, quanto Stalingrado ainda estava sob cerco alemão, no qual advogava a benevolência com os prisioneiros. Em 2 de fevereiro de 1943, 91 mil homens esfomeados, doentes e exaustos foram feitos prisioneiros, entre eles, 22 generais do 6º Exército, depois da rendição do marechal alemão Von Paulus. Essa lógica do “nós contra eles” também teve seus ecos por aqui, quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, depois de um longo namoro do presidente Getúlio Vargas com o Eixo (Alemanha-Itália-Japão), nos primeiros anos do Estado Novo (1937-1945).
Em 1942, quando navios brasileiros foram afundados por submarinos alemães no Oceano Atlântico, Vargas fez um acordo com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, e o Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética, entre outros). Alemães, italianos e japoneses e seus descendentes no Brasil passaram a ser imediatamente perseguidos. Clubes foram fechados ou obrigados a mudar de nome, caso do Palmeiras, antigo Palestra Itália, e do Yacth Club Santo Amaro, antigo Clube Alemão de Vela, em São Paulo. Até bares e restaurantes foram obrigados a mudar de nome, como o Bar Luiz, no Rio de Janeiro, que se chamava Bar Adolph.
Proximidade tóxica
Os suspeitos de pertencerem ao Partido Nazista ou à Juventude Hitlerista eram mantidos sob vigilância ou confinados em campos de concentração. Houve pelo menos nove campos: Tomé-Açú, no Pará (alemães e japoneses); Chá de Estevão, em Pernambuco (empregados alemães da antiga Cia Paulista de Tecidos, hoje Pernambucanas); Ilha das Flores, no Rio de Janeiro (onde prisioneiros de guerra foram misturados com presos comuns); Pouso Alegre, em Minas Gerais (marinheiros do navio Anneleise Essberger); Ilha Anchieta (colonos japoneses); Guaratinguetá e Pindamonhangaba (fazendas onde foram confinados colonos alemães e marinheiros do navio Windhuk); Penitenciária Agrícola da Trindade, em Florianópolis; e Presídio Político Oscar Schneider, em Joinville (onde um hospital foi transformado em colônia penal para suspeitos de atividades nazistas do Sul do país), em Santa Catarina.
Os países do Ocidente, principalmente Estados Unidos, Inglaterra e França, mas também o Brasil, comemoram o Dia da Vitória contra o nazifascismo nesta quinta-feira, porém, devido à diferença de fuso horário, os russos o fazem somente nesta sexta-feira. A rendição incondicional da Alemanha nazista foi assinada no fim da noite de 8 de maio de 1945 (23h01, horário da Europa Ocidental) e entrou em vigor nesse horário. Em Moscou, já era o dia 9 quando a rendição foi assinada. O Exército Vermelho havia tomado Berlim em 2 de maio.
O Dia da Vitória é um feriado muito importante na Rússia, comemorado com desfiles militares na Praça Vermelha e outros eventos patrióticos. O presidente russo, Vladimir Putin, atualmente, usa essa data para enviar mensagens e reforçar a narrativa russa sobre a Guerra Patriótica. Desde 2014, com a ocupação da Crimeia, as celebrações são usadas para legitimar as intervenções na Ucrânia, que culminaram na guerra atual. Por isso mesmo, são boicotadas pelas democracias do Ocidente.
O presidente Lula chegou nesta quarta-feira a Moscou para assistir às comemorações dos 80 anos da derrota dos nazistas. No palanque da Praça Vermelha, estará ao lado dos líderes da China, Xi Jinping; da Venezuela, Nicolás Maduro; de Cuba, Miguel Díaz-Canel; de representantes de ex-repúblicas soviéticas e de países africanos que mantêm relações próximas com a Rússia.
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Do ponto de vista econômico, a Rússia é uma grande fornecedora de fertilizantes para o nosso agronegócio e compra carne, soja, café, açúcar e frutas do Brasil. A relação do Brasil com a Rússia é uma parceira estratégica nos Brics, cuja importância aumenta com a nova política tarifária do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A visita oficial de Lula segue a tradicional linha de independência da política externa brasileira, mas ocorre num contexto muito diferente de outras ocasiões, por causa da guerra da Ucrânia. No Brasil e na Europa, a aproximação de Lula com Putin é tóxica para a opinião pública e demais chancelarias, porque ultrapassa a linha divisória da centralidade política da democracia.
*Luiz Carlos Azedo, Jornalista, colunista do Correio Braziliense.
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