Internações no Inca diminuem 28% em cinco anos e pacientes aguardam até 30 meses para a iniciar tratamento contra o câncer no Rio

O Inca não se pronunciou na reportagem de O Globo

Com fortes dores abdominais, o produtor de eventos Diego Cesar Clemente, de 40 anos, buscou atendimento na emergência do Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, no fim do ano passado. A equipe médica identificou a presença de pólipos no intestino e, sem condições de fazer a cirurgia ali, transferiu o paciente para o Hospital Federal de Bonsucesso (HFB). Lá, foram dois procedimentos: um para desobstruir o intestino, e outro para retirar uma parte dele. Em janeiro, quando teve alta e com o câncer diagnosticado, Diego começou uma batalha pela vida.

Enquanto a população fluminense envelhece, o que exige mais do setor de saúde, o atendimento a pessoas com câncer vem encolhendo e colocando vidas, como a de Diego, em risco. Ontem, nas filas para atendimento oncológico do Sistema Estadual de Regulação (SER) havia 2.908 pessoas. Um paciente, de 77 anos, esperava há 920 dias pela primeira consulta para tratar uma neoplasia de pele.

Referência nacional, o Instituto Nacional de Câncer (Inca), reduziu drasticamente as internações. Em cinco anos, a queda foi de 28%: de 9.888, em 2018, para 7.079, no ano passado. E a Defensoria Pública da União (DPU) compara dados das filas de oncologia de 6 fevereiro com 21 de junho deste ano: o número de pacientes para atendimento de primeira vez em coloproctologia oncológica subiu de 570 (o mais antigo, desde agosto de 2023) para 641 (a partir de janeiro de 2024).

Lei: tratamento deve ser em 60 dias

A lei 12.732/2012 garante aos pacientes com neoplasia maligna o direito ao primeiro tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) em até 60 dias. Mas, na prática, não é isso o que acontece. Nas filas de oncologia havia ontem 900 pessoas aguardando há mais de dois meses, mais de 30 meses, a primeira consulta ambulatorial com oncologista.

O oncologista Carlos Gil, presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) explica que o tempo do início do tratamento pode significar, sobretudo para alguns tumores mais agressivos, uma diferença entre o paciente ter a chance de cura ou não.

— É um problema que afeta diversos estados brasileiros. A cirurgia, por exemplo, é o único método curativo para diversos tipos de tumores. É necessário investir mais para estruturar toda a rede: seja no Inca, seja nos outros hospitais federais. É uma questão estratégica mesmo de saúde pública. Se a gente começar hoje, talvez a gente consiga mitigar um pouco o número que estará lá em 2030. Do contrário, teremos um aumento da mortalidade, do sofrimento dos pacientes e das famílias, além de representar um custo para o país — diz

Em março, Diego foi incluído numa fila do SER. Dois meses depois, procurou a DPU, que ingressou com uma ação. Ele ocupava a 155ª posição na fila. No último dia 18, uma decisão judicial deu 20 dias para que fosse providenciada uma consulta inicial em coloproctologia oncológica e posterior tratamento. E, ontem à noite, Diego recebeu o comunicado de que sua consulta, finalmente, foi marcada para 2 de julho, no Hospital Municipal Moacyr Rodrigues do Carmo, em Caxias.

— A gente fica meio perdido e desesperado. Não sei se tenho que fazer quimioterapia ou radioterapia. Quem vai me acompanhar? Quando vou poder tirar a bolsa de colonoscopia? — indaga Diego, que mora no Engenho da Rainha, tem uma companheira e um casal de filhos. — Tive que parar de trabalhar e me encostar pelo INSS. Será que um dia vou conseguir voltar a trabalhar?

Em Vista Alegre, a família de Rozilda da Silva Dias corre contra o tempo na busca de tratamento para a senhora de 68 anos, diagnosticada com câncer de mama, em estágio avançado, no dia 27 de maio, na clínica da família perto de sua casa. No último dia 1º, ela foi inserida numa fila do SER.

— Como a gente, como família, fica? Esperando com uma agonia no coração, porque a doença pode avançar. Sabemos que a doença está ali se espalhando, podendo acontecer metástase. Estou lutando para salvar minha mãe — afirma a filha Rosiane Dias Andrade Leite.

Rosiane acompanha diariamente a fila de primeira consulta para mastologia. Na segunda-feira, Rozilda estava na 35ª posição. Mas sua filha vem identificando questões que chamaram a atenção:

— A fila me parece duvidosa e não temos com quem falar. Dá um sentimento grande de impotência. Vi pessoas de janeiro e fevereiro de 2023 que não somem da listagem. E teve uma vez em que a minha mãe era a 40ª e depois retrocedeu para 41ª. Já fiz reclamação na Ouvidoria do SER.

Rozilda da Silva Dias aguarda na fila consulta para tratar câncer de mama diagnostico: "Eu quero viver, eu preciso viver, eu sei que não está na minha hora" — Foto: Gabriel de Paiva
Rozilda da Silva Dias aguarda na fila consulta para tratar câncer de mama diagnostico: “Eu quero viver, eu preciso viver, eu sei que não está na minha hora” — Foto: Gabriel de Paiva

Rozilda está preocupada com a demora:

— Quanto mais demorar, mais me prejudica. Eu queria tanto que resolvesse logo isso, Eu tenho muita vontade de viver, sobreviver. E isso me preocupa, está tirando o meu sossego. Eu quero viver, eu preciso viver, eu sei que não está na minha hora. Que alguém me ajude, Deus principalmente. Espero que essa fila ande, para eu resolver logo a minha situação,

Filas reguladas pelo estado

As filas de oncologia são controladas pelo SER, vinculado à Secretaria estadual de Saúde (SES-RJ). E, por ser considerado de alta complexidade, o tratamento contra o câncer é de responsabilidade federal, através de sua rede própria de hospitais, da universitária e da conveniada.

Por e-mail, a SES-RJ afirma que, nos últimos anos, “vem percebendo a redução na oferta de vagas oncológicas nas unidades federais”. Dentre as maiores filas, cita a de coloproctologia e a de mastologia. Acrescenta que “como parte da política de enfrentamento ao câncer, a SES-RJ vem realizando uma série de ações para ampliar o diagnóstico e o tratamento dos pacientes oncológicos no estado”. O objetivo das ações, acrescenta, “é desafogar o atendimento na rede federal e ampliar a oferta de vagas para estes pacientes em todo território fluminense”.

Mudança de cidade para conseguir tratamento

Moradora de Cabo Frio, Olinda das Graças Pereira Souza lida com as dificuldades do câncer na família há bastante tempo. Primeiro, foi a cunhada Vera Lúcia Soares, que completa um ano de morta em agosto, vítima de câncer no intestino. Diagnosticada, Vera conseguiu ser consultada por um hospital conveniado de Cabo Frio seis meses depois. Mas já era tarde para conseguir sucesso no tratamento.

Agora, é o cunhado de Olinda que enfrenta um câncer de próstata, ainda sem tratamento. Carlos Alberto Dias, de 72 anos, descobriu a doença em março de 2023 numa clínica da família do Rio. Aguardou numa fila até janeiro último, sem ser chamado. Como tem casa de veraneio em Cabo Frio, ainda naquele mês decidiu começar tudo de novo na Região dos Lagos, conseguindo a primeira consulta em março.

— Tem sido uma Via-Crúcis muito dolorosa. O meu cunhado ficou quase um ano padecendo no Rio. Chegou em Cabo Frio, o oncologista do SUS que o atendeu pediu exames. Alguns, feitos no Rio, não valiam mais. Outros, o hospital não tinha e tivemos que fazer vaquinha da família para pagar. Também tivemos que pagar um cardiologista oncológico, porque ele tem uma doença no coração. Um ano e três meses depois de descobrir o câncer é que ele vai para a segunda consulta, que vai decidir sobre o tratamento. O PSA (sigla em inglês para Antígeno Prostático Específico) dele, que era sete, já está em 18 — lamenta Olinda.

Presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio, vereador Paulo Pinheiro, ressalta que os leitos vazios nos seis hospitais federais — todos atendem pacientes com câncer — e no Inca refletem a falta de pessoal, de insumo e infraestrutura nas unidades federais, o que afeta diretamente o atendimento a pacientes oncológicos.

— Estive no Inca na há duas semanas. Constatei a falta de anestesistas e de cirurgião oncológico. No Cardoso Fontes (Jacarepaguá) também verifiquei que os profissionais não têm como fazer quimioterapia, porque faltam insumos, luvas, seringas. Na sexta-feira percorri os seis hospitais federais do Rio. Dos seus 1.651 leitos, 47% estavam desocupados (773). Não tem como serem abertos por falta de pessoal, material e infraestrutura — diz o vereador, que ontem promoveu audiência pública para tratar dos seis hospitais federais.

Um médico do Bonsucesso conta que o hospital não conta mais com oncologia clínica:

— O paciente faz a cirurgia no hospital, mas tem de voltar para a fila do SER para fazer o tratamento, uma quimioterapia, uma radioterapia em outra unidade. Isso é um crime. A pessoa que faz uma cirurgia precisa fazer o tratamento adequado imediatamente para evitar a metástase.

Voluntários de instituições como a Associação Brasileira de Apoio aos Pacientes com Câncer (Abrapac) e o Projeto Social Gileade, de Niterói, orientam doentes e familiares.

— Chego a responder 200 mensagens por dia pelo WhatsApp, do Rio e até de outros estados, de pessoas pedindo orientações e ajuda jurídica — conta advogada Raquel Barreto, do Projeto Gileade. — A morosidade é tão grande que as pessoas morrem. Estou com um caso grave de um bebê de um ano e pouco, que a família está com problemas psicológicos, porque não consegue atendimento.

— A demanda só tem aumentado e as pessoas estão morrendo à espera de atendimento público. Falta estrutura nos hospitais federais, faltam profissionais, que não são contratados. Há queixas de pessoas que levam quase um ano para conseguir um exame — afirma Solange Gomes, vice-presidente da Abrapac.

As Defensorias Públicas da União e do Estado também têm sido procuradas, para que, através da Justiça, doentes consigam garantir o cumprimento da Lei 12.732/2012. A DPU impetrou uma ação civil pública, conseguindo sentença sentença favorável parcial, em setembro de 2023. No estado, a defensora pública Alessandra Nascimento, coordenadora de Saúde do órgão, lamenta que, ao longo dos anos, a oferta para tratamento de câncer venha diminuindo:

— Nas reuniões que tenho com gestores e organizações, observo o encolhimento da rede do SUS para atender câncer. E não é só a fila do SER, da regulação. É o atendimento interno nos hospitais. São as filas internas para marcar exames, consultas e cirurgias.

O que diz o Ministério da Saúde

Procurado desde o dia 13, o Ministério da Saúde informou nesta terça-feira por e-mail que “está atuando para reestruturar e fortalecer os hospitais federais no Rio de Janeiro, após anos de precarização”. Segundo a pasta, ” entre as medidas recentes para a manutenção e recomposição da força de trabalho, estão a prorrogação de mais de 1,7 mil contratos que se encerrariam em maio e o chamamento de 475 profissionais, por meio de Processo Seletivo Simplificado, para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público nos hospitais e institutos federais”. As contratações, diz, estão em andamento.

Em relação ao atendimento oncológico, o órgão cita que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, inaugurou nesta segunda-feira (24), em Petrópolis, as novas instalações do Hospital Alcides Carneiro. Ao todo, serão abertos 87 leitos para o tratamento de câncer e acolhimento às gestantes, puérperas e bebês.

Está em andamento ainda, de acordo com a pasta, o processo de instalação do novo setor de radioterapia do Hospital Federal do Andaraí (HFA), com previsão de inauguração até o fim deste ano.

O ministério lista outras ações visando a reforçar a rede de atendimento oncológico no estado. Entre elas, a integração da rede federal a dos hospitais universitários e filantrópicos, além das unidades do estado. Mais uma medida é voltada à qualificação das filas de regulação: “o objetivo é definir o grau de prioridade para o atendimento, de modo que os pacientes não percam janelas de oportunidade”. A pasta acrescenta que o Hospital do Andaraí “deve ser vocacionado para o atendimento de oncologia”.

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