Elas existem e não é mais possível escondê-las. Os números não permitem. As perdas acumulam-se e o transporte público só faz encolher, a ponto de alguns serviços colapsarem, exigindo do poder público vultosos recursos de socorro. Para além dos crescentes subsídios já praticados, antes mesmo dos impactos causados pela pandemia. O modelo de gestão do setor não está conseguindo dar conta do ciclo vicioso: onde sobe o preço das passagens, diminui a quantidade de passageiros, reduz-se a operação e pioram os serviços. Ninguém sai bem nessa foto.
Os dados mais expressivos vêm de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do país, que perderam, na última década, um terço e metade dos passageiros transportados por ônibus, respectivamente. Uma conta na casa de um bilhão de passageiros/ano no caso da capital paulista e quase 600 milhões na cidade maravilhosa. Não é à toa, portanto, que dezenas de empresas tenham quebrado e o PCC, segundo noticiário, tenha virado operador de transporte público. Se não houver mudanças no modo de gerir tais sistemas de inegável interesse público, a mobilidade reduzida impactará ainda mais negativamente a economia e os serviços prestados nessas e em outras metrópoles brasileiras.
Em contrapartida a esse declínio de usuários de transporte público, assistiu-se no Brasil, neste início de século, a um “boom” de automóveis, acompanhado por uma invasão sem precedentes de motos nas vias públicas. Entre 1998 e 2022, a frota de veículos automotivos quase quintuplicou, passando de 24 para 117 milhões. Enquanto o número de motos foi multiplicado por 10, pulando de 2,5 para perto de 25 milhões de unidades em circulação. Detalhe: nesse mesmo período, a população brasileira cresceu algo em torno de 20%.
Os números atestam a opção preferencial pelo transporte individual para garantir a mobilidade diária. Os resultados não poderiam ser outros: aumento no tempo de deslocamento urbano, graças aos engarrafamentos cada vez maiores e constantes, e no acréscimo da quantidade de acidentes de trânsito, com saldo de 34 mil mortes em 2022. Isso faz o Brasil figurar no trágico ranking da OMS (Organização Mundial da Saúde) como o terceiro país do mundo com mais mortes no trânsito, perdendo apenas para a Índia e a China. Essa situação alarmante vai requerer dos governos, nos três níveis, um comprometimento com uma governança efetiva sobre um problema complexo que já não é apenas de transportes há muito tempo.
Para essa mudança de patamar no tratamento da mobilidade urbana no país, três pilares precisam ser fortalecidos, segundo especialistas e lideranças dos setores envolvidos: a aprovação do marco regulatório de transportes, o fortalecimento das agências reguladoras e o estabelecimento de autoridades metropolitanas de mobilidade. Isso na visão daqueles que defendem a definição de um novo modelo de gestão capaz de oferecer serviços com menor custo, no menor tempo e com maior oferta, sustentados por uma tarifa técnica, reconhecidamente distinta da tarifa pública a ser praticada.
Há, no entanto, aqueles que defendem o estabelecimento de um sistema único de transportes (SUM), baseado no SUS e no SUAS, e que preconiza também a prestação de serviços de qualidade com confiabilidade e disponibilidade adequadas, apoiadas por um Fundo Nacional de Mobilidade enriquecido pela participação da sociedade através de conselhos e da realização periódica de conferências municipais, estaduais e federais e o mais importante, tudo isso com tarifa zero para os usuários. Como se vê, pode haver divergências quanto aos caminhos de governança e de custeio a serem adotados, mas é consenso inegável que algo precisa ser feito urgentemente.
*Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, é autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade.