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Doze mil vezes favela, um retrato da crise urbana

*Luiz Carlos Azedo

A vida banal nas favelas, como diria o mestre Milton Santos, foi relegada a segundo plano pelas políticas públicas e capturada por grupos criminosos: milicianos e traficantes

Sessenta e dois anos depois, o filme “Cinco Vezes Favela” hoje parece uma visão ingênua e glamourizada de problemas que somente se agravaram desde então. São histórias de um cotidiano que ficaram para trás, muito longe da própria realidade em que se transformaram as favelas. Produzido pelo Centro Popular de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1962, ao lado dos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, é obra seminal do Cinema Novo. O filme apresenta cinco histórias separadas, com trilhas sonoras de Carlos Lyra, Hélcio Milito, Mário Rocha e Geraldo Vandré.

Com Flávio Migliaccio, Waldir Fiori, Isabela e Alex Viany, sob direção de Marcos Farias, “Um Favelado” conta a história de João, um morador da favela que é espancado por não ter como pagar o aluguel. Ao pedir ajuda a um amigo, acaba envolvido num assalto. Dirigido por Miguel Borges, “Zé da Cachorra”, com Waldir Onofre, João Ângelo Labanca, Claudio Bueno Rocha e Peggy Aubry, retrata a revolta de um líder da favela contra um grileiro que engana e suborna os favelados, com objetivo de construir um edifício no lugar.

“Couro de Gato”, de Joaquim Pedro de Andrade, reúne Francisco de Assis, Milton Gonçalves, Cláudio Correia e Castro, Riva Nimitz e os garotos Paulinho, Sebastião, Damião e Aylton, um grupo de meninos que descem o morro para roubar gatos e vendê-los a um fabricante de tamborim.

Cacá Diegues dirige “Escola de Samba, Alegria de Viver”, interpretado por Abdias do Nascimento, Oduvaldo Viana Filho, Maria da Graça e Jorge Coutinho, o drama de um jovem sambista que assume a direção da escola poucos meses antes do Carnaval, em meio a dívidas, rixas com a escola rival e conflitos com a esposa Dalva. “Pedreira de São Diogo” é o quinto episódio, com Sadi Cabral, Francisco de Assis, Glauce Rocha, Joel Barcellos, Cecil Thiré e Jair Bernardo, sob direção de Leon Hirszman: uma favela sobre uma pedreira corre risco de desabamento por causa das explosões de dinamite

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As histórias se remetiam a situações reais. Por exemplo, a da favela da Praia do Pinto, localizada entre o Leblon e Lagoa, que viria a ser erradicada, no Rio de Janeiro. Numa madrugada de maio de 1969, em meio às ameaças de remoção, cerca de mil barracos foram destruídos pelas chamas, deixando 9 mil pessoas desabrigadas. Os moradores foram levados para conjuntos distantes, como Cidade Alta e Cidade de Deus, e alguns para a Cruzada São Sebastião, vizinha à favela. Na área foi erguido um condomínio conhecido como Selva de Pedra e, mais recentemente, o Shopping Leblon.

Grande mercado

Nesta semana, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o Estudo sobre Favelas e Comunidades Urbanas, baseado nos dados do Censo 2022, que revela a expansão da população favelada e do número de favelas em todo o Brasil. É o retrato de uma crise urbana sem solução à vista. Mostra que a Rocinha, localizada na zona sul do Rio de Janeiro, a favela mais populosa do país, com 72.021 habitantes e 30.371 domicílios, continua em expansão e, agora, se verticaliza. Sol Nascente, no Distrito Federal, com 70.908 moradores e 21.889 domicílios, não parou de se expandir horizontalmente e começa a se verticalizar. Na terceira posição, Paraisópolis, em São Paulo (SP), abriga 58.527 pessoas.

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O número de favelas no Brasil dobrou de 6.329 em 2010 para 12.348 em 2022, um fracasso das políticas urbanas, sobretudo habitacionais, para seus 16,3 milhões de brasileiros. Entre as 20 maiores favelas do país, oito estão na Região Norte, sendo sete em Manaus (AM), indicando uma alta concentração na Amazônia, onde cerca de 34,7% da população vive em áreas de favela; em seguida vêm o Amapá tem 24,4% da população, e o Pará, 18,8%, a sede da 30ª Conferência Mundial do Clima da ONU, a COP-30, em novembro de 2025. A favelização reflete as dificuldades de sobrevivência das populações ribeirinhas tradicionais.

A favela é a síntese da iniquidade social brasileira, reflete uma crise urbana dissimulada por expressões como “complexos”, que mascara a favelização dos subúrbios, e “comunidade”, geralmente associada às favelas tradicionais. Não por acaso, sua população é mais jovem do que a média nacional, 30 anos, enquanto a do país é de 35; seu índice de envelhecimento é menor, com 45 idosos para 100 habitantes, contra 80 de média nacional. Em relação à diversidade racial, predominam pardos (56,8%) e pretos (16,1%), ante 45,3% e 10,2% de média nacional. O número de pessoas brancas nas favelas (26,6%) é bem inferior ao índice nacional, de 43,5%.

A vida banal nas favelas, como diria o mestre Milton Santos, foi relegada a segundo plano pelas políticas públicas, subordinadas a grandes interesses privados, e capturada por grupos criminosos, milicianos e traficantes de drogas, que exploram suas principais atividades econômicas. Há uma simbiose entre a economia formal e as atividades econômicas informais das favelas, porque uma complementa a outra. Não é só o fornecimento de mão de obra barata e serviços eventuais, pessoais e domésticos. O melhor exemplo é a reciclagem, que reaproveita mais de 90% das latas de alumínio.

As favelas são um mercado consumidor importante, mas não têm a contrapartida dos serviços públicos: são apenas 896 escolas, 2.792 farmácias e alguns postos de saúde, em contraste com impressionantes 50.934 templos religiosos, que funcionam como espaço de convivência e assistência social, de um total de 958.251 estabelecimentos, a maioria comerciais. Se as favelas brasileiras fossem um Estado, seriam o 5° maior em número de domicílios e o 7° maior em renda.

*Luiz Carlos Azedo, Jornalista, é colunista do Correio Braziliense. A coluna deste domingo ( 10/11/2024) está publicada também no Estado de Minas.

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