O maior avião do mundo era ucraniano. Era.
A reportagem da Folha de S. Paulo dirigiu cerca de uma hora de Kiev nesta sexta-feira (19) para visitar os destroços do Mriya —cujo nome se traduz por “sonho”—, um projeto da era soviética que se tornou um orgulho nacional da Ucrânia independente.
O veículo de 250 toneladas, construído pela empresa aérea Antonov entre a capital ucraniana e a cidade de Zaporíjia, teve sua primeira exibição pública em 1988 e bateu recordes para o peso e tamanho de um avião de carga —tinha 84 metros do nariz à cauda e 88 metros da ponta de uma asa a outra.
Seu uso original era para o programa espacial da União Soviética, com um desenho que remonta ao auge da Guerra Fria nos anos 1960, carregando aeronaves menores acopladas ao seu topo. Mas nas décadas seguintes, conforme o afã do conflito passou, foi readaptado para levar cargas comerciais —chegou a pousar em Guarulhos em 2010 e 2016.
O Mriya, ou Antonov-225, foi uma das primeiras vítimas da guerra deflagrada contra a Rússia há pouco mais de dois anos. Seu último voo foi justamente em fevereiro de 2022, quando precisou retornar ao aeroporto de Hostomel, centro de operações da empresa, para trocar um de seus seis motores.
A peça necessária chegou em 20 de fevereiro, e o avião estava pronto para decolar dois dias depois, aguardando só alguns documentos burocráticos para liberação. Seu próximo destino era Leipzig, na Alemanha, no dia 24 —exatamente o dia em que estourou a invasão russa.
A papelada nunca chegou. Como o espaço aéreo ucraniano ficou bloqueado, havia um risco enorme de que o avião fosse abatido em pleno ar. A empresa então resolveu deixá-lo ali mesmo, sob um galpão no aeroporto. Só que os russos chegaram ali em menos de dois dias, como parte de uma operação para tomar a capital comandada por Volodimir Zelenski.
Não se sabe exatamente como o Mriya foi destruído. Com a ofensiva inimiga apelidada de Batalha de Hostomel, todo mundo fugiu do hangar, que só voltou a ter presença ucraniana em abril. O avião já estava despedaçado.
A maior aposta é que os russos botaram fogo em tudo ao escapar, incluindo seus próprios equipamentos, e que o incêndio tenha vitimado o Mriya no processo, segundo Volodimir Smus, chefe do centro de controle do aeroporto.
“Foi como perder um amigo”, diz o controlador, que trabalhou com as rotas do avião por 25 anos. “Quando ele saía em decolagem e quando pousava nessa pista, as pessoas da região ficavam sabendo e vinham saudá-lo.”
Os destroços continuam ali, como um velório de anos a céu aberto —mas inacessível ao público, já que se trata hoje de um espaço militar estratégico.
As partes destruídas nunca foram removidas ou descartadas. Primeiro, porque a tarefa é difícil, devido a suas dimensões mastodônticas. Segundo, porque há a intenção de um dia levar os restos mortais para exibição num museu, segundo Smus.
O problema é que a Ucrânia segue numa guerra sem qualquer perspectiva de resolução —lidando, na verdade, com incursões mais agressivas da Rússia recentemente, como mostram as investidas contra as regiões de Kharkiv, Tchernigov e Dnipropetrovsk na última semana.
O hangar é um testamento da deflagração. O passeio pelo prédio administrativo da Antonov na manhã desta sexta tinha clima de cemitério, com janelas quebradas, estruturas de metal retorcidas, acessórios esquecidos em fugas apressadas e um piso revestido de cartuchos de balas —tão numerosos que compunham um tapete pelo chão.
São heranças ainda da estadia de soldados russos ali para a base daquele ataque a Kiev que acabou nunca se efetivando com sucesso.
Existe um plano, discutido na mídia e nas conversas de ucranianos com vontade de restaurar a autoestima nacional, de construir um novo Mriya —afinal a tecnologia e logística necessárias para sua montagem continuam em domínio do país.
O problema é que “é um projeto muito caro, que tomaria tempo e recursos demais, e o país está em guerra”, pondera Smus. “Mas a equipe que o construiu está pronta para fazer de novo.”
Parece mais hoje uma réstia de esperança, com uma dose de nostalgia, do que um projeto de fato concreto. “Ele parecia um pássaro voando nos céus”, suspira o funcionário.
A informação é do repórter Walter Porto, da Folha de S. Paulo.