*Luiz Carlos Azedo
Ainda estou aqui é um exemplo da história como presente, resgata o caso Rubens Paiva quando o ex-presidente Bolsonaro e um grupo de militares são acusados de tentativa de golpe de Estado
Na sequência do ano novo, um rito de passagem no qual as esperanças se renovam, os brasileiros se ufanam com a merecidíssima conquista do Globo de Ouro de melhor atriz por Fernanda Torres, protagonista do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, sucesso de bilheteria no Brasil e da crítica mundial.
O filme não repetiu o feito de Central do Brasil, do mesmo diretor, que ganhou o Globo de Ouro em 1999, mas redimiu a não premiação de Fernanda Montenegro, sua protagonista, diva da cultura brasileira — numa das melhores interpretações de sua carreira no cinema —, que também aparece no final de Ainda estou aqui, quando a matriarca da família Paiva já estava com Alzheimer.
Foi bonito ver ícones do cinema mundial, como Kate Winslet e Tilda Swinton, reverenciarem a vitória de Fernanda Torres, o que significa o reconhecimento também da qualidade do nosso cinema pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, a meca da industrial cinematográfica mundial. Uma vitória da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um resgate da nossa história política.
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Rubens Paiva era político, engenheiro e jornalista, foi deputado federal, em 1962, pelo PTB paulista. Como parlamentar, defendia reformas sociais progressistas do governo João Goulart, deposto pelos militares. Foi cassado pelo Ato Institucional nº 1, logo após o golpe militar de 1964. Eunice Paiva, sua esposa, de um dia para o outro, viu sua vida revirada, tendo que se reinventar para conduzir sozinha a família de cinco filhos, sem seu companheiro de vida, sem renda, enfrentando diariamente o medo e a incerteza de encontrá-lo vivo ou morto.
Ao contrário de outras obras do gênero, o filme de Walter Salles tem uma dramaturgia muito forte, sentimental e política. Segundo a crítica de cinema Lilia Lustosa, Fernanda Torres protagoniza o filme com “uma atuação contida, equilibrada e justa, talhada na medida exata para retratar uma mulher de coragem e fibra que, sem fazer escândalo, nunca se calou e nunca aceitou o desaparecimento do marido”. Ainda estou aqui é inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, seu filho, escritor, dramaturgo e jornalista paulista.
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“Eunice não apenas sobreviveu à prisão e às consequências da ditadura, como usou-as como força motriz para encontrar um novo caminho. Formou-se em direito, tornou-se uma ativista das causas indígenas e dos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil e militar, tendo sido uma das principais vozes para a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante esse período”, destaca a crítica de cinema.
Repúdio ao golpismo
O assassinato de Rubens Paiva só começou a ser esclarecido após o fim da ditadura. Marival Chaves, ex-agente do regime militar, anos depois, em depoimentos públicos e à Comissão Nacional da Verdade, revelaria práticas sistemáticas de tortura, ocultação de cadáver e execuções realizadas pelos órgãos de repressão, incluindo o DOI-Codi.
Marival foi sargento e trabalhou no Centro de Informações do Exército (CIE). Segundo ele, o ex-deputado foi torturado “por ordens superiores”. Em uma dessas sessões de tortura, não resistiu. Seu corpo foi esquartejado e descartado no mar, uma prática comum na época, para ocultar provas de assassinatos cometidos pelo regime.
Segundo o ex-agente Marival Chaves, em depoimento à Comissão da Verdade, os responsáveis seriam o coronel do Exército Rubens Paim Sampa, comandante do DOI-Codi, no Rio; o capitão do Exército Frederico Aramis de Oliveira; o major do Exército Alfredo Paulo Charlet; e o delegado do Dops e agente do DOI-Codi Manoel Thomaz Pereira.
A revisão do caso hoje está na alçada do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda estou aqui é um exemplo da história como presente na atual conjuntura política, na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro e um grupo de militares, entre os quais alguns generais de Exército e um almirante de esquadra, são acusados de tentativa de golpe de Estado.
O Globo de Ouro vem às vésperas do 8 de janeiro de 2023. O que se viu naqueles atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, quando foram depredados o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, ainda hoje é amplamente rejeitado pelos brasileiros. Um ato em repúdio ao golpismo, organizado pelo Palácio do Planalto, será realizado amanhã e reunirá representantes dos Três Poderes.
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O prêmio vem também às vésperas da posse de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, que volta ao poder mesmo depois da tentativa de golpe para impedir a diplomação de Joe Biden, em 6 de janeiro de 2022. Segundo o cientista político e CEO da Quaest Felipe Nunes, os atos de 8 de janeiro de 2023 guardam semelhança com o 6 de janeiro de 2022.
“Entretanto, a repercussão na opinião pública é muito diferente”, explica o cientista político. Dados de pesquisas YouGov mostram que em janeiro de 2021, logo depois da invasão do Capitólio, 9% dos americanos aprovavam fortemente os atentados, enquanto no Brasil foram 4%. Em janeiro de 2022, um ano depois, esse percentual passou para 14%; no Brasil, chegou a 6%, menos da metade. Em janeiro de 2023, chegou a 20%.
Segundo Nunes, “Biden errou ao partidarizar o tema. Isso permitiu aos republicanos se recuperarem do mais violento ataque à democracia americana”. Pesquisa Quaest divulgada nesta segunda-feira mostra que ainda hoje 86% dos brasileiros desaprovam as invasões do 8 de janeiro de 2023, e 7% aprovam. Outros 7% não sabem ou não responderam.
*Luiz Carlos Azedo, Jornalista, é colunista do Correio Braziliense.
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