*Vicente Loureiro
Mais um verão se vai, deixando marcas nas paredes, resultado de repetidas inundações que nos fazem lembrar das vidas levadas pelas enxurradas e das perdas materiais, impondo um recomeço para muitos, tão sazonal quanto a própria estação das águas. É difícil saber se a esperança renovada dessas pessoas surge da sua fé ou da resignação recalcada pelo que parece ser inevitável. Afinal, é sempre assim: às vezes dá tempo de empoleirar móveis sobre tijolos e em outras tudo alaga quase num piscar de olhos. O que nunca falta é a lama e a desolação do dia seguinte.
A quantidade de milímetros de chuva despejados sobre um pedaço de cidade qualquer soa, por vezes, como desculpa para tentar esconder que nem sempre o inevitável tem razão. Existem procedimentos preventivos, corretivos e mitigadores que, quando tomados a tempo e de modo adequado, podem aumentar a resiliência do ambiente atingido, reduzindo perdas, mas sobretudo preservando vidas. Ninguém deveria morrer por viver em áreas de risco, numa espécie de CTI urbanístico.
No caso da Baixada Fluminense, onde vivo, os especialistas em hidrologia aplicada às cidades, entre eles o Professor Paulo Canedo, afirmam que, tanto quanto ou até mais do que investimentos em novas estruturas de drenagem urbana na região, é fundamental realizar obras e serviços de manutenção dos equipamentos existentes. Isso inclui os cuidados com gestão do uso e ocupação do solo, principalmente em áreas que comprometem o funcionamento de infraestruturas de controle de vazão, como pôlderes (estruturas hidráulicas para controle de enchentes em áreas baixas) e barragens de contenção nas cabeceiras dos rios, entre outras. Um descaso, promotor de votos e danos, incluindo mortes.
Há cerca de 35 anos, a região vem recebendo significativos investimentos em drenagem, consumindo cerca de 5 bilhões de reais, a preços de hoje, e responsáveis por estruturas como a barragem de Sarapuí no Gericinó, as obras de urbanização com importantes galerias de águas pluviais do programas Baixada Viva/Nova Baixada. As ações de saneamento e reassentamento de famílias de áreas de risco de inundações promovidas pelo Despoluição da Baía de Guanabara. Além dos vultosos investimentos do PAC, todos dirigidos a domar a volúpia destrutiva das enchentes.
Isso sem contar com as ações isoladas do Governo do Estado e das prefeituras da região voltadas para microordenagem e destino final do lixo, também necessárias. A maior parte delas orientadas pelas recomendações do Plano Diretor Integrado de Controle das Inundações da Bacia dos Rios Iguaçu e Sarapuí, até hoje ainda não totalmente implantadas e, em alguns casos, inconclusas. Fica a pergunta: se não foram poucos os investimentos e a maioria deles seguiu as orientações do Plano elaborado pelo Laboratório de Hidrologia da Coppe da UFRJ, por que a população da Baixada ainda sofre tanto com enchentes?
A resposta não é simples. Os erros causados pela falta de continuidade administrativa dos governos, provocando demora ou subutilização no funcionamento de algumas das infraestruturas construídas, associada à paralisação de obras, corroendo por vezes o que foi investido, dão conta de explicar parte das causas. Mas não se deve deixar de considerar a pouca importância dada ao planejamento, principalmente no que se refere às recomendações para manutenção dos equipamentos instalados. Somados a isso, a falta de controle da expansão urbana e o voluntarismo político na tomada de decisões de prevenção geraram uma espécie de curandeirismo urbanístico. Onde pode valer mais as preces do Cacique Cobra Coral do que as medidas de enfrentamento impositivas. Desse modo, as águas vão seguir rolando nos mesmos lugares, castigando as mesmas pessoas. Haja esperança.
*Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade.